Violências e Vitimização - parte I e II
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Carla Machado foi investigadora e docente na U. Minho. Esta conversa teve lugar a 9 de Janeiro 2010 em Lisboa.
Edição Video e Audio de V. Henriques.
A. H.: Carla isto da Violência Doméstica, violências há muitas não é?
C. M.: Pois e a própria ideia de Violência Doméstica é uma ideia, é um conceito com o qual eu pessoalmente tenho algumas dificuldades. Porque em Portugal chama-se Violência Doméstica essencialmente à Violência Conjugal contra as mulheres, o que do ponto de vista estritamente formal não é assim muito adequado, porque à partida Violência Doméstica é toda a violência que acontece em casa.
A.H.: Que pode ser física ou não, não é?
C.M.: Pode ser física ou não, pode ser contra as mulheres, contra os idosos, contra os homens, contra as crianças. Portanto, eu prefiro pessoalmente falar de Violência Conjugal ou de Abuso Sexual, ou de Violência Contra os Idosos. Mas de qualquer maneira em Portugal foi esta a convenção que prevaleceu. Violência Doméstica é violência contra as mulheres, o que também obscurece um pouco o próprio território do que é a Violência Familiar e até do que é a própria Violência Conjugal (se quisermos ir por aí), porque há uma série de estudos que mostram que os homens também podem ser vítimas de Violência Conjugal, embora em grau e em proporção muito diferente das mulheres. Mas, mesmo em Portugal, há estudos que indicam que há aqui um núcleo completamente ignorado de homens também vitimizados.
A.H.: Provavelmente menos física…
C.M.: Hmm, há essa teoria de que as mulheres vitimizam mais emocionalmente e os homens mais fisicamente mas os estudos empíricos (pelo menos os estudos com grandes amostras, recolhidas na comunidade) não confirmam muito essa ideia. O que confirmam é que as mulheres cometem mais violência física menor - muita bofetada, muito empurrão…
A.H.: Exactamente.
C.M.: … coisas desse género…
A.H.: Sim, sim, ah engraçado…
C.M.: Por exemplo, entre as miúdas mais novinhas no namoro acontece muito isso - a bofetada. Parece ser uma prática relativamente comum.
A.H.: Até engraçado…
C.M.: É. Isso é evidente nos nossos estudos. É desvalorizado socialmente. É visto como uma resposta apropriada, até quase…
A.H.: Engraçada…
C.M.: … sinal de emancipação.
A.H.: Nesse sentido.
C.M.: É, é, eu julgo que sim. Depois na Violência Conjugal (já em casais mais maduros), de facto, o panorama é um bocadinho diferente mas onde se vê essencialmente a diferença não é na violência física menor, é na violência grave.
A.H.: Pois.
C.M.: E aí, claramente, os homens aparecem como mais ofensores e na Violência Sexual, claramente, as diferenças de género são muito significativas. Mas pronto, mas em Portugal de facto convencionou-se um bocadinho chamar Violência Doméstica à violência contra as mulheres.
A.G.: Já agora e indo ao impacto. No homem da violência sobre o homem vítima ou a mulher vítima. Julgo que também há algumas…
C.M.: Há, há alguns estudos. Os estudos normalmente mostram que as mulheres sofrem mais o impacto da violência, não só a nível conjugal mas da violência em geral, do crime em geral. Todos os estudos de impacto sobre vítimas mostram que as mulheres sofrem mais o impacto do crime.
A.G.: Hmm, hmm.
C.M.: No caso da violência conjugal isso ainda aparece mais reforçado e sobretudo também (é a tal questão) como as mulheres são mais vítimas de violência mais grave, mais reiterada no tempo e com a componente sexual (embora muitas vezes elas nem sequer se refiram a ela no discurso) é natural que, de facto, o impacto apareça mais agravado. Por outro lado, nós também depois estudamos o impacto em quem recorre ao sistema de ajuda - que são as mulheres. Portanto, nós apanhamos depois, no sistema de apoio, uma fatia de vítimas do que é o grande universo da Violência Conjugal - que são de facto as vítimas de violência muito severa, muito reiterada, já com muitos anos.
A.H.: Pois.
C.M.: Normalmente quem chega ao sistema de ajuda já chega com… (por exemplo quem chega à APAV ou à UMAR ou à CIG) … chega com anos e anos de violência já de uma forma muito… com um impacto muito agravado na sua vida, não é? Portanto, também a questão do impacto também surge aqui, mais uma vez, um bocadinho desfocada pelas próprias amostras que nós observamos.
A.H.: Pois, pois, imagino que sim. Esta crença face à Violência Doméstica, este entendimento do fenómeno como um problema de foro privado… Evoluímos alguma coisa, ou não?
C.M.: Eu acho que evoluímos… evoluímos seguramente muito. Agora, o que eu acho curioso, nos estudos que a gente vai fazendo em Portugal, é que os estudos mostram que há, de facto, uma grande evolução na maneira como as pessoas falam acerca do fenómeno, na maneira como as pessoas, enfim, criticam genericamente a violência. Por exemplo, os nossos estudos sobre crenças em relação à violência mostram que genericamente é um fenómeno desaprovado, em que todos os grupos sociais mostram que esta ideia da privacidade começa um bocadinho a desvanecer-se, embora subsista...
A.H.: Subsista claro.
C.M.: … em alguns sectores. O que é curioso é que, quer em Portugal quer lá fora, os estudos mostram que a mudança nas crenças tem muito pouco impacto a nível da mudança nos comportamentos.
A.H.: Ah, ah. Interessante!
C.M.: E portanto, esta ideia de que basta mudar crenças para mudar comportamentos é uma ideia complicada. Eu acho que mudar crenças é importante, até porque pelo menos afecta a vivência que a vítima tem da violência.
A.H.: Claro, sem dúvida.
C.M.: O facto de encontrar cá fora um discurso que de alguma forma a valide, que valide tentativas de emancipação, etc. Agora, de facto, por exemplo, nos jovens em que nós encontramos um discurso muito intolerante face à violência - em que a violência claramente é reprovada, etc. - temos taxas de prevalência superiores às dos casais adultos, o que é de facto preocupante. Portanto, há aqui, de facto, uma discrepância entre práticas e crenças. E o que alguns estudos sugerem é que as pessoas genericamente desaprovam a violência mas depois encontram situações de excepção em que ela é considerada legítima.
A.H.: E isso acontece ainda com muita frequência…
C.M.: E isso acontece ainda com muita frequência. Por exemplo, nos miúdos, no nosso estudo com jovens, o que nós encontramos é, genericamente, a ideia de que a violência é má - é desaprovada, é um método errado de resolver os problemas. Muitas vezes acontece até um discurso moralista dos miúdos em relação à violência - é sinal de uma personalidade frágil, é sinal de uma família desestruturada, é sinal de que a pessoa não tem competências para resolver os problemas de outra maneira. Mas depois, ao mesmo tempo, surge um discurso do género “bom, mas em certas situações eu também era capaz” - e essas situações, por exemplo, nos jovens são essencialmente ciúmes e infidelidade. É a grande situação que os mais novos apontam como legitimadora da violência. Depois também aparece muito esta ideia de que “bom, se a pessoa agiu sem ser uma coisa pensada”; portanto muito a ideia de não haver planeamento…, de impulsividade. E a impulsividade desculpabiliza. Se depois o agressor pede desculpa - que é uma dinâmica que depois também observamos muitas vezes nos casamentos, não é? O arrependimento, pedir desculpas, a lua-de-mel - há muita tendência para acreditar que “foi só uma vez, foi uma coisa que não teve assim tanta importância”… Se a violência não foi muito grave, não é? É evidente que é mais fácil desculpar uma bofetada ou um empurrão do que uma sova, não é? E os miúdos estabelecem uma gradação e os mais velhos também… E surge também como desculpabilizador o contexto: “Se foi feito em privado”…
A.H.: Ah, pois..
C.M.: … - é uma coisa que é curiosa, continua a aparecer no discurso dos jovens – “se foi feito em frente dos meus amigos não é aceitável porque me humilha, no meu papel social”. Agora, “se foi em privado é mais fácil desculpar”. Portanto, eu julgo que nós temos tido algum impacto em mudar crenças genéricas.
A.H.: Ok.
C.M.: Em instituir um discurso de que a Violência Doméstica, enfim, íntima, não é aceitável - isso já é um passo em frente.
A.H.: Sem dúvida.
C.M.: Mas continuamos a não conseguir atingir estas situações de excepção, que para os miúdos continuam a ser vistas como legítimas.
A.H.: Estás a dizer uma coisa interessante que é, exactamente, agora os miúdos também já, quer dizer, conseguimos também identificá-la nos miúdos…
C.M.: Conseguimos, conseguimos.
A.H.: Isto é novo…
C.M.: É, é relativamente novo.
A.H.: E é importante.
C.M.: Nós… a Violência Doméstica começa a ser estudada lá fora nos anos 60 e nos mais jovens nos anos 80. Em Portugal, isto aconteceu muito mais tarde. O primeiro estudo eu julgo que é da década de 90, é um estudo da Susana Lucas (julgo eu) e houve uma colega do Minho, a Sónia Caridade, que acabou agora um doutoramento recentemente sobre a questão da violência nos jovens, com um estudo a nível nacional. E o que ela fez foi de facto uma coisa interessante, porque para além dos inquéritos ela fez grupos de discussão com os jovens e é precisamente nos grupos de discussão que estes temas, estas excepções aparecem. Se nós olharmos só para os inquéritos o panorama é óptimo, do ponto de vista das crenças, das atitudes sociais. O problema é esta ideia da excepcionalidade, do “OK a violência é errada mas… mas em certas situações é aceitável, legítima.
A.H.: Como é que tu vês o surgimento destas manifestações de violência em miúdos? Vês isso como uma evidência do caldo de cultura em que estamos ou uma evidência de alguma coisa mais estrutural?
C.M.: Eu acho que, no caso dos jovens especificamente, às vezes é muito difícil de discernir. Por exemplo, no caso dos adultos nós tendemos a fazer uma leitura muito genderizada para a violência.
A.H.: Ok.
C.M.: Que eu acho que é uma leitura importante, embora não seja a única. No caso dos miúdos, eu acho que há uma mistura de questões de género, que por exemplo aparecem muito marcadas quando falamos com os miúdos sobre Violência Sexual, em que aparece muito claramente um discurso genderizado - um discurso de provocação da vítima ou de merecimento, etc. …
A.H.: Ok.
C.M.: Mas há outras dimensões em que… eu acho que é difícil, às vezes, estabelecer a diferença entre o bullying (por exemplo) e a violência no namoro. E portanto, que há de facto miúdos que podemos olhar para eles ( não é?) como não tendo competências relacionais ou competências de resolução de problemas que lhes permitam lidar com situações conflituais de outra maneira. E isto leva-te, por exemplo, a que, do ponto de vista dos programas de intervenção com jovens, haja muitas vezes este dilema: vamos trabalhar, por exemplo, crenças e questões mais culturais e questões ligadas às relações de género e aos papéis de género, ou vamos trabalhar competências de resolução de problemas? E os programas muitas vezes repartem-se entre estas duas modalidades, sem conseguirem fazer uma integração destas várias dimensões que eram importantes.
A.H.: Eu acho muito interessante que se fale mais, estava-me aqui a recordar, que um dos programas recentes para lidar com os miúdos que bebem muito cedo e que depois têm acidentes de automóvel graves, etc., é ensiná-los a beber. E estava a pensar no paralelo com esta violência relacional e conjugal - se é possível ensiná-los a lidar com o impulso para a violência?
C.M.: Eu acho que é possível e é necessário ensiná-los a lidar com o conflito e com a discussão.
A.H.: Exacto.
C.M.: Por exemplo, neste momento a APAV tem um programa (que eu acho que é muito interessante), que está a implementar em 2 escolas, que é o Programa 4D. É um programa inspirado num modelo canadiano, que a APAV, com a nossa ajuda, do projecto Violência nas relações juvenis de intimidade, que eu coordeno na UM, adaptámos para a realidade portuguesa. É um programa multidimensional, que abarca várias áreas, desde os consumos, à sexualidade, à violência nas relações e também a igualdade de género. E uma das coisas engraçadas do programa, é que - embora a ênfase seja muito cognitivo-comportamental, assente na discussão de crenças, valores - uma das coisas interessantes é precisamente o facto de a grande aposta do programa ser o treino em situações concretas.
A.H.: Concretas de conflito, de tensão.
C.M.: De conflito, exactamente, em que há um conjunto de situações que são pré-estruturadas e que são dadas aos miúdos, e que eles tem que ensaiar e discutir a eficácia de várias modalidades de resolução. Portanto, põem-nos num papel muito activo de resolução de problemas. E eu acho que isso pode ser engraçado, de facto, para os ensinar a lidar com algo que vai inevitavelmente surgir, que é o conflito, de facto, na relação íntima.
A.H.: Exactamente. Já estamos aqui na área da psicoterapia e vamos aqui responder a uma das questões que os nossos colegas mais adorariam ver respondidas, não é? É possível enunciar princípios terapêuticos fundamentais para a intervenção bem sucedida com vítimas de Violência Doméstica?
C.M.: Eu tenho muita dificuldade em responder à pergunta porque se calhar acho que é difícil enunciar princípios fundamentais para a intervenção terapêutica qualquer que seja, não é? O que eu… Portanto (eu vou dar uma resposta mais pessoal) o que eu acho que é preciso, o que eu acho que às vezes, de facto… quando falha, mina a intervenção com vítimas é… são duas ou três coisas. Em primeiro lugar eu acho que é uma intervenção que precisa de tempo.
A.H.: Hum hum.
C.M.: As vítimas surgem muito, muito desestruturadas, muito… com muita necessidade de contar a história. E muitas vezes nós temos a sensação durante as primeiras “n” sessões de que não estamos a fazer nada. Aliás, de que a vítima não nos deixa abrir a boca praticamente. Que está ali o tempo todo a debitar a sua história.
A.H.: Precisa de estar ali.
C.M.: Precisa de estar ali, precisa de contar, precisa que a gente ouça. Precisa que a gente valide, não é? Embora isso às vezes seja frustrante, sobretudo para quem tem menos prática…
A. H.: Quer intervir, não é?
C.M.: Quer fazer, não é? Aquela coisa, queremos mudar e queremos ajudar. Eu acho que, de facto, este espaço é importante. E o que muitas vezes se nota é que a vítima que aparece com um discurso muito desorganizado, que às vezes… (enfim, vou exagerar) mas quase roça o psicótico…
A.H.: Hum hum.
C.M.: … ao longo das sessões vai-se organizando progressivamente. Eu estou-me a lembrar, por exemplo, de uma senhora que eu atendi há muito tempo que de facto tinha um discurso temporalmente desorganizado, saltava de assunto em assunto, contava as mesmas histórias “n” vezes, etc., e foi preciso um conjunto enorme de sessões para que ela começasse a ter uma história, a ser capaz de contar uma história para si mesma e para os outros que de facto fizesse sentido. Portanto, eu julgo que a vítima chega ali (sobretudo no caso da violência conjugal) muitas vezes sem ter contado a história, sem ter tido espaço para contar a quem quer que fosse, e sem contar para si própria, não é? E portanto, precisa ali de um tempo para se organizar. E isso leva também a que, às vezes, alguém que nos parecia mais perturbado do ponto de vista psicológico progressivamente, ao longo das sessões, vai começando a ter uma maior capacidade de organização temporal, discursiva, narrativa. E que, portanto, eu acho que a intervenção precisa de tempo.
A.H.: Claro, hum hum.
C.M.: Depois, eu acho também que, ao mesmo tempo que precisa de tempo, também é preciso garantir a segurança física da vítima e isso é central. Eu acho que sem isso o tempo não serve para nada, porque a vítima vai estar permanente a ser… Portanto, é preciso garantirmos… - por exemplo, através dos modelos mais de intervenção em crise, planificação da segurança, ou através do recurso a agências mais formais - é preciso garantir que a pessoa está minimamente protegida em relação à violência. Depois, eu acho uma coisa, enfim, relativamente básica, que é que nós precisamos - eu acredito que para qualquer processo terapêutico - nós precisamos de encontrar pontes afectivas com a vítima. Não quero dizer que a gente precise de querer levar as pessoas para casa - acho até desejável que não queiramos - mas eu acho muito difícil (é uma coisa completamente subjectiva) acho muito difícil intervir com alguém de quem eu não consiga gostar nem um bocadinho. Portanto, eu preciso de conseguir identificar ali, na história algo através do qual eu seja capaz de me ligar humanamente àquela pessoa. Muitas vezes, muitas vezes isto é relativamente fácil ouvindo a história daquela pessoa, porque as histórias são de tal maneira, de facto, brutais e duras…
A.H.: Que é fácil sentir.
C.M.: … que a gente consegue sentir facilmente empatia, mesmo quando há outras dimensões da vítima que muitas vezes se afastam muito do estereótipo da que nós muitas vezes como terapeutas acabamos por construir. Um estereótipo da vítima - que é a vítima boazinha, bem comportada, heróica, sacrificial - nós adoramos essas vítimas, mas essas há poucas.
A.H.: Claro. Que não têm culpa nenhuma e que se…
C.M.: Que não têm culpa nenhuma e que são muito heroínas e que são muito fortes, nós adoramos essas vítimas, mas de facto poucas, poucas se adequam ao estereótipo. Portanto, nós precisamos de conseguir encontrar na vítima qualquer coisa que nos ligue, com a qual a gente consiga humanamente trabalhar. Eu acho que isso é, de facto, importante.
A.H.: E vês aí alguma dificuldade especial, ao nível da construção dessa aliança e até dos objectivos terapêuticos?
C.M.: Eu acho que, de facto, eu acho que na nossa prática uma das grandes dificuldades de construção da aliança é de facto quando nós temos uma imagem de vítima muito estereotipada.
A.H.: E a que ela não se ajuste.
C.M.: E a que ela não se ajuste. Portanto, quando a vítima não é boazinha, por exemplo. Quando a vítima, de facto, enfim, tem culpa no conflito relacional - não quer dizer ter culpa pela violência, não é?
A.H.: Ok.
C.M.: Esta distinção, por exemplo - eu acho que é uma distinção muito importante de estabelecer - entre a vítima ter um componente de responsabilidade na escalada do conflito e ter responsabilidade pela violência - são coisas completamente diferentes.
A.H.: E que para o terapeuta pode ser difícil de estabelecer?
C.M.: Para o terapeuta pode ser difícil e, de facto, por exemplo para os terapeutas mais inexperientes (estou a falar agora mais do ponto de vista como professora ou como formadora) sinto que muitas vezes isto é muito difícil no início. Que, de facto, nós construímos (se calhar porque são os casos que, por exemplo, aparecem nos livros, não é?) … nós construímos uma certa imagem de vítima, que é a vítima absolutamente não culpada, que é a vítima...
A.H.: Que não fez nada, de suspeito.
C.M.: … que não fez nada, que não tem culpa nenhuma, em que a violência é completamente arbitrária….
A.H.: Que não escalou.
C.M.: … Em que, de facto, é fácil ver o agressor como o “mau”! E nós aderimos a este discurso, não é? Do “ele é mau”. E depois, quando a vítima não é assim tão semelhante ao estereótipo temos dificuldade em ajustarmo-nos.
A.H.: Então há dificuldade, não é?
C.M.: Eu acho que é uma dificuldade, de facto, esta imagem de vítima ideal. Que, aliás, acontece nos terapeutas mas, por exemplo, também há estudos com juízes, por exemplo, que mostram que, de facto, os juízes dão penas muito mais pesadas quando as vítimas se aproximam deste modelo de vítima ideal e quando as vítimas têm comportamentos - tanto no caso da violência conjugal como por exemplo na violação, mesmo no abuso sexual -, quando a vítima se afasta deste estereótipo de completa inocência e tem comportamentos mais… por exemplo, quando a vítima consome álcool ou quando a vítima é infiel, ou quando a vítima tem um passado promíscuo, ou quando é claramente uma pessoa desafiante face ao sistema, hostil, por exemplo… os juízes claramente tendem a atribuir penas mais baixas.
A.H.: Não só os juízes, nós terapeutas também.
C.M.: Também, nós também gostamos menos delas, eu julgo que sim. Depois acho que outro grande obstáculo à intervenção é quando nós temos a ideia (que também é relativamente típica) de que a única forma de atingir os objectivos terapêuticos é pôr fim ao casamento. E eu acho que, embora ninguém diga isto assim, é uma ideia implícita nos técnicos que trabalham com vítimas de Violência Conjugal - que o bom é ela abandonar a relação. Eu acho que é uma ideia que nos passa pela cabeça a todos!
A.H.: Atropelamos o cliente, não é? Atropelamos…
C.M.: … e eu acho que atropelamos o paciente e muitas vezes isto não corresponde ao que a vítima quer.
A.H.: Exactamente.
C.M.: Raramente corresponde ao que a vítima quer, pelo menos no início do processo, não é? O discurso típico é “eu quero que ele deixe de me bater”.
A.H.: Exactamente, que é diferente.
C.M.: É “eu quero que ele se transforme”. Depois, muitas vezes, no decurso do processo terapêutico, de facto, o abandono da relação acaba por surgir como a única alternativa ou como aquela que é mais viável. Mas eu acho que quando nós aderimos a esta ideia como um objectivo quase de partida, o que acaba por acontecer é que a meio do processo, mais uma vez, distanciamos ou criticamos ou começamos a culpabilizar a vítima que se recusa a aderir a este nosso objectivo implícito da intervenção. E portanto, começamos a assistir a um discurso de “não vale a pena, ela reconcilia-se sempre com ele, ela volta sempre atrás, é um caso falhado. Bom, esta não é bem vítima!”. Começamos a ter o tal discurso de “esta é a falsa vítima”.
A.H.: O terapeuta começa a perder cumplicidade e a perder aliança.
C.M.: Exactamente, exactamente. É um discurso também, por exemplo, que encontramos muito frequentemente nos polícias. Os polícias têm muitas vezes este discurso de “não vale a pena porque elas reconciliam-se sempre, porque elas retiram sempre a queixa”.
A.H.: “Às tantas gostam”.
C.M.: “Às tantas gostam”, pois. Os terapeutas não dizem “às tantas gostam” mas começam a falar sobre a personalidade, enfim, menos bem estruturada da vítima, alguns começam a surgir com um discurso em torno do masoquismo da vítima, da dependência relacional. Portanto, quando a vítima muitas vezes não encaixa neste nosso modelo do que devia ser, não é? – “que devia ser autónoma, que devia ser independente, que devia etc.” - de facto, nós tendemos um pouco a, enfim, a passar daquela posição da vítima ideal para a vítima culpada quase.
A.H.: Como é que achas que está o nível de formação e preparação dos técnicos de saúde mental, tendo em conta o que acabaste de dizer, não é? Para precisamente fazer, se posicionar da melhor forma nesta área de intervenção.
C.M.: Genericamente eu acho que é um tema que começa a entrar na formação, embora de forma muito discrepante, dá-me impressão, nas várias faculdades e nos vários programas de formação. Mas, por exemplo, ao nível da psiquiatria há alguns estudos que sugerem que continua a haver uma negligência sistemática deste tema. Por exemplo, há estudos que mostram que as mulheres batidas recorrem imenso aos serviços psiquiátricos, têm taxas de internamento e de hospitalização e de medicação muito elevadas comparadas com outras mulheres, mas raramente o problema da Violência Doméstica é identificado nestes serviços. Portanto, estas mulheres são diagnosticadas com as perturbações mais variadas.
A.H.: São patologizadas.
C.M.: São patologizadas, e a questão da violência raramente é levada em conta. Por exemplo, um caso típico é quando a Violência Doméstica está associada ao alcoolismo da mulher. Aí claramente, muitas vezes, há um discurso inverso - em vez de se olhar para, eventualmente, o álcool como um mecanismo de coping em relação à violência - muitas vezes há o discurso inverso… “ela é batida porque (…)”.
A.H.: Claro, portanto os técnicos têm muito caminho a fazer ainda, no sentido de discriminarem…
C.M.: Eu acho que há muito caminho a fazer. Depois do ponto de vista, por exemplo, do pessoal médico nos serviços… nós fizemos uma série de estudos com médicos e enfermeiros, em que claramente já há, por um lado, um maior alerta para este problema e práticas que já começam a mudar, mas ainda existe muito um discurso de “isto é um problema psicológico, um problema social, não é um problema médico, e, portanto, a mim cabe-me tratar a queixa física”. A mulher aparece com um hematoma, aparece com uma coisa qualquer e eles tratam a contusão, tratam a lesão mas muitas vezes não questionam sequer sobre a origem do trauma. Outras vezes, quando questionam, mesmo sabendo da violência, continua a haver imensa relutância às questões da denúncia…
A.H.: Pois.
C.M.: … por parte do pessoal médico. Embora também já comece a haver práticas diferentes em alguns sectores.
A.H.: Tu identificarias modelos de intervenção psicológica mais eficazes para a intervenção com vítimas de VD ou não farias essa…
C.M.: Eu em termos de mais eficazes não faria essa …
A.H.: Diferenciação.
C.M.: … essa diferenciação. Quer dizer, eu acho que a intervenção em crise, no sentido da identificação das necessidades imediatas da mulher, da planificação da segurança - aquilo que muitas vezes é feito nas instituições de apoio a vítimas que funcionam em Portugal, por exemplo a APAV e outras - eu acho que é fundamental. A associação disto ao aconselhamento jurídico… portanto, uma intervenção de primeira linha, muito centrada na protecção da integridade física da mulher - eu acho que isso é mesmo fundamental. Depois, do ponto de vista dos modelos mais terapêuticos, bom, por um lado temos a questão de que muitas destas mulheres não seguem o percurso, não é? Grande parte destas mulheres que chegam às instituições vão a um, dois, atendimentos e pouco mais. Em termos de modelos de intervenção mais aprofundada… os modelos cognitivo-comportamentais são muito dominantes dentro da área (como são dominantes dentro da psicologia em geral). Há os modelos de intervenção familiar, também com algum peso, e os modelos de intervenção de orientação mais feminista - que muitas vezes são conflituais, entram em conflito entre si. Há algumas propostas muito engraçadas de conciliação de propostas de abordagens feministas com abordagens familiares - por exemplo, os textos da Virginia Goldner são muito interessantes nesse sentido - em que há uma intervenção familiar mas com uma clara ênfase na assunção de responsabilidades, na finalização da violência, com uma leitura de género também subjacente que me parece interessante. E depois os modelos narrativos que são um bocadinho emergentes também nesta área.
A.H.: E que podem ser muito úteis.
C.M.: Mais… E que podem, da minha prática julgo que podem ser muito úteis. Os modelos narrativos, na área da violência começaram por ser aplicados até mais à questão do Abuso Sexual. Há muito mais coisas sobre intervenção narrativa no abuso mas também vão surgindo na Violência Doméstica. Há uma série de experiências engraçadas, quer de intervenção individual quer de intervenção em grupo, com modelos narrativos bastante eficazes. Vai agora, aliás, começar um programa… (vamos ver como é que vai funcionar) de intervenção narrativa em grupo para mulheres que estão em acolhimento residencial. É uma intervenção que está a ser promovida pela Comissão para a Igualdade de Género e segue o modelo de grupos de auto-ajuda mas com uma orientação narrativa. Estamos ainda a recrutar a amostra. É um projecto coordenado por uma colega do Minho, pela Marlene de Matos, em que eu estou a colaborar. Pronto, estamos a ver se conseguimos, de facto, promover aqui…
A.H.: Uma integração.
C.M.: A intervenção em grupo, eu acho que é um modelo de intervenção muito importante com estas mulheres. A nossa grande dificuldade sempre é…curiosamente são questões de ordem prática. Eu julgo que, em primeiro lugar, nós temos pouca tradição do grupo e da auto-ajuda e destas intervenções mais comunitárias em Portugal. Depois temos sempre o problema com estas mulheres (problemas práticos, pelo menos na minha experiência de condução de grupos) que é encontrar horas a que elas se consigam reunir, com quem deixem os filhos, dinheiro para pagar as deslocações, portanto, muitas vezes, são estas questões de ordem prática. Agora, depois no grupo, de facto eu acho que há um trabalho de validação, de reconhecimento e até de construção de relações que vão depois para além da finalização do processo terapêutico - que no caso destas mulheres, que estão muito isoladas, é um contributo central.
A.H.: Fundamental.
C.M.: Acho que sim.
Parte II
A.H.: Parece-te que há procedimentos básicos para lidar com o processo traumático, que se instauram na sequência da experiência de abuso ou de violência? Deste o exemplo das tarefas terapêuticas de (re)narrar e reprocessar. Portanto, identificarias procedimentos básicos a ter em consideração, por exemplo, por profissionais de saúde que atendem vítimas?
C.M.: Eu, em relação ao (re)narrar a experiência tenho muitas dúvidas, do ponto de vista pessoal. Quer dizer, eu acho que é importante dar espaço à mulher para narrar a experiência como ela quiser.
A.H.: Pelo risco do (re)traumatizar, não é isso que estás a …
C.M.: Eu tenho dúvidas sobre aquela abordagem mais estruturada - por exemplo, nos modelos cognitivo-comportamentais surge muito esta ideia de que é preciso um processo de exposição quase.
A.H.: Hum hum.
C.M.: Exposição, com construção de hierarquia e narrativa detalhada, com componentes sensoriais, etc.
A.H.: Quase obrigatório, não é?
C.M.: Sim, por exemplo, no Abuso Sexual isto aparece muito prescritivo em vários manuais de intervenção. E eu tenho muitas dúvidas sobre isto.
A.H.: Se é sempre eficaz.
C.M.: Se é sempre eficaz, se não é (re)traumatizar a mulher, se não é (re)traumatizar as crianças … Eu pessoalmente raramente o faço dessa maneira. Agora, por um lado acho que é importante dar espaço para a mulher contar - mas sem esta estrutura rígida imposta por nós. Por outro lado acho que às vezes, em certos casos (agora já estou a falar mais até da minha experiência no abuso sexual), acho que em certos casos isto pode fazer sentido. Por exemplo quando, de facto, a história está completamente fragmentada, desorganizada, quando há grande dissociação.
A.H.: Ok, exactamente.
C.M.: Acho que há casos em que este processo de narrar, de facto, de uma forma detalhada o que é que foi acontecendo, ajuda a construir uma história, a dar uma organização à vida e até a validar aquela experiência como algo de real, não é? Depois acho que há várias maneiras de fazer isto. Não tem de ser necessariamente verbal. Pode ser por escrito, pode ser… estou a lembrar-me de uma cliente em que nós fizemos isto com fotografias. Em que ela trazia fotografias de diferentes etapas da vida e ia contando as histórias. Portanto, acho que depende, mas acho sempre que o espaço livre de narrativa é importante. Quanto à exposição detalhada assim, à de facto, à hierarquia, a mim suscita-me algumas questões, até do ponto de vista ético. Acho, que de facto, às vezes é (re)traumatizar.
A.H.: Precisamente, pegava aqui. Fazia a ponte para esta questão que é, com base nos estudos que tens efectuado, na tua experiência clínica, o que é que podemos considerar um caso bem sucedido vs mal sucedido de acompanhamento psicoterapêutico?
C.M.: Mais uma vez é difícil, não é? Nós tendemos a estabelecer como critério a redução da violência, e eu acho que é um critério importante embora um pouco básico ou limitado. Ou a redução da violência ou a modificação significativa - não tem de ser a cessação. Eu não diria que para uma mulher ser um caso terapêutico bem sucedido, tem de ter cessado completamente a violência mas acho que é importante que ela tenha sido contida, que pelo menos não seja uma constante nem um implique risco significativo. Por exemplo, do ponto de vista dos estudos mais empíricos nós normalmente definimos como critérios de sucesso a cessão ou a redução significativa da experiência - na frequência, na severidade…
A.H.: Na forma como é activado interiormente, hum hum.
C.M.: … e depois, o reposicionamento da mulher face a essa violência que acho que, de facto, é central.
A.H.: Uma etapa importante…
C.M.: É o critério talvez mais central. Mas eu teria muita dificuldade, apesar de tudo, em considerar um caso de sucesso se a mulher continuasse a ser batida severamente, mesmo que houvesse modificações pessoais.
A.H.: Sem dúvida.
C.M.: Portanto, eu acho que aqui há uma questão de posicionamento face ao problema, que é importante, mas eu continuo muito a achar que a protecção física e da segurança é de facto central. Até porque estes casos são muito imprevisíveis do ponto de vista do que é que vai ser a sua evolução no futuro, não é?. E, portanto, se nós não conseguirmos ter aqui alguma contenção da violência, enfim, podemos estar a achar que um caso é de sucesso e passados três meses ter uma mulher morta, por exemplo.
A.H.: …pois…
A.G.: E até que ponto esse reposicionamento existe efectivamente se ela se permite manter nessa situação, não é? Na mesma dinâmica?
C.M.: Exactamente! Nessa situação, claro.
A.H.: Quer avançar com a questão 5? Esta questão da experiência que… da sua experiência com…
A.G.: – Sim… é uma questão que se nos coloca muitas vezes, quer em contexto hospitalar, no sistema de saúde, quer em contexto de institucionalização, portanto, em contexto residencial. Muito frequentemente esta população é muito heterogénea naquilo que nos traz enquanto sintoma ou problema, não é? As mulheres vítimas de Violência Doméstica apresentam graves perturbações do comportamento e da personalidade e que nós não poderemos escamotear, naquele sentido em que procuramos despatologizar o sintoma da mulher batida, enquanto, eventualmente uma consequência e relativa ao impacto desta violência, não é? Portanto, sugerem-se efectivamente, estruturas que não resultam dessas experiências de vitimização. E de que forma é que estão relacionadas as problemáticas relacionadas às perturbações da vinculação e do desenvolvimento ou outras com estas experiências de vitimização? E de que forma essa relação pode informar a nossa intervenção terapêutica?
C.M.: É uma questão complicada porque, por um lado de facto às vezes este colorido sintomático, que é de facto muito variado (não é?) – às vezes dá a sensação de que nós conseguimos encaixá-las em quase todos os diagnósticos – muitas vezes de facto parece-me (ou algumas vezes) parece-me ser mais o produto da experiência abusiva. Sobretudo quando a experiência é muito prolongada no tempo. Eu acho que de facto tende a haver – para além de por vezes haver, por exemplo, dano neurológico associado – tende a haver uma grande desorganização mental, cognitiva. E, portanto, muitas vezes é difícil saber aquilo que é produto da violência de facto, quando temos histórias mais pesadas, do que é resultado de outras experiências mais precoces. Até porque, por outro lado, quando nós olhamos para o passado destas mulheres há de facto experiências traumáticas, muitas vezes desde a primeira infância. E nós sabemos que, de facto, experiências precoces de vitimação tendem a acarretar maior risco de vitimação futura. E, portanto, muitas vezes, de facto, na história destas mulheres temos histórias que começam pela negligência, passam pelos maus-tratos, experiências de abuso, experiências de violência sexual. É muito difícil depois de perceber, de facto, o que é que é impacto específico da violência conjugal e o que é que é produto desta história, de múltiplas vitimações, completamente desorganizada. Por outro lado, temos também o acumular de outros factores, também eles geradores de perturbação, que é o facto de estas mulheres serem (as que nos chegam aos serviços), quase todas de meios extremamente desfavorecidos - a questão da pobreza, a questão do stress, a questão… enfim, da alienação de poder e da sensação de não serem escutadas ou ouvidas pelo sistema social. O próprio conflito que muitas destas mulheres têm com as estruturas sociais que, à partida, as deviam ajudar mas que muitas vezes são estruturas que elas sentem como hostis (como por exemplo a segurança social). Portanto, de facto aqui estas mulheres aparecem muitas vezes com um colorido tão grande, que muitas vezes, de facto, eu acho que remete para perturbações mais precoces, outras vezes remete para este acumular de situações que todas elas são susceptíveis de induzir perturbação psicológica, em que nos é completamente impossível dizer o que é que é causa de quê e que de facto complicam, mais uma vez, a nossa intervenção e complicam a identificação de, enfim, dimensões mais positivas ou de formas de coping mais adaptativas com as quais a gente possa trabalhar... e agarrar!
A.G.: E é engraçado que às vezes, nessas situações, aquilo com que nos deparamos são mulheres que não querem falar das suas experiências, não é?
C.M.: Claro, claro! Exactamente.
A.G.: Quanto mais coloridas menos querem…
C.M.: Exactamente! Exactamente. E há alguns estudos engraçados que mostram que, por exemplo, uma das grandes diferenças entre… (estou a falar agora mais das experiências ocorridas na infância) uma das grandes diferenças entre percursos mais adaptativos e percursos mais inadaptativos é a capacidade de perceber aquilo que lhes aconteceu na infância como inadequado. E, de facto, muitas vítimas têm um discurso normalizador em relação às experiências completamente abusivas que sofreram na infância e são essas, tipicamente, as que exibem maior perturbação.
A.H.: Muito bem Carla, isto leva-nos para a questão (este dilema clínico clássico dos terapeutas) de quando estamos na posição do terapeuta e vemos a vítima continuar a ser abusada, devemos denunciar a situação ou… e arriscar a relação?
C.M.: Pois… Juridicamente a resposta é fácil, não é?... Devemos.
A.H.: Pois… devemos…
C.M.: Devemos. Inclusivamente, vale a pena dizer que, por exemplo, se estivermos a trabalhar num contexto de função pública podemos ser criminalmente responsabilizados pela não denúncia.
A.H.: Portanto, é um risco sério, não é?
C.M.: É um risco sério, é. Ou seja, nós, qualquer funcionário público que tenha conhecimento do cometimento de um crime no decurso da prática profissional tem obrigação legal de denunciar. Se denunciamos ou não denunciamos, é mais uma vez as diferenças entre as crenças e as práticas!
A.H.: Pois, exactamente.
C.M.: Na nossa prática na Unidade, com crianças denunciamos sempre porque achamos que, não só o grau de dependência do cliente, como o nosso grau de capacidade de controlar o que se passa na família é quase nulo, não é? Portanto, nos casos de maltrato, nos casos de abuso, denunciamos sempre.
A.H.: Portanto, a urgência é proteger a criança.
C.M.: É! A prioridade é proteger a criança e pôr fim ao abuso, mesmo que isso comprometa a relação terapêutica, e compromete. Acabou, não é? Em noventa por cento dos casos. Não é fácil. Levanta imensos problemas. Depende muito da sorte que nós temos, dos magistrados com os quais trabalhamos e da relação e grau de confiança que temos com eles. Já no caso das mulheres fazemos, normalmente, uma avaliação mais ponderada dos ganhos e das perdas da denúncia. Normalmente, denunciamos quando achamos que há risco de vida, que há risco de homicídio. Portanto, eu acho que é muito importante também o facto de os técnicos terem formação na despistagem do risco. Há uma série de indicadores mais ou menos objectivos já bem identificados (enfim, com todo o grau de erro que isto tem sempre) que eu acho que é importante considerar na despistagem do risco de agressão grave ou homicídio. Muitas vezes tentamos - quando achamos que há de facto necessidade de denúncia – obviamente, trabalhar isto previamente com a vítima. Tentar, se possível, que seja ela a fazer a denúncia e não sermos nós a assumir este papel, embora apoiando a vítima nesse processo, inclusive indo com ela às instituições. Mas já houve casos em que tivemos que, pura e simplesmente, denunciar! E depois há sempre aquela margem de… enfim, de angústia existencial em que ficamos nos casos em que não denunciamos… em que ficamos sempre com aquela dúvida porque achamos que não é um caso de risco grave mas nem sempre é possível sabê-lo. Portanto, se eu quiser dar uma resposta segura, diria que devemos denunciar sempre!
A.H.: Sempre…
C.M.: Mas não o faço de forma tão linear assim!
A.H.: Para tornar as coisas ainda um bocadinho mais complexas, depois há a questão da diferenciação social e cultural que temos que ter sempre…
C.M.: Pois. A questão da diferenciação cultural começa agora a ser um problema no nosso País. Nós até há pouco tempo tínhamos uma população relativamente homogénea – agora começamos a não ter; internacionalmente começa-se muito a falar desta questão da competência cultural dos técnicos – cá em Portugal ainda se fala pouco. Eu julgo que a APAV, por exemplo, tem aqui uma Unidade em Lisboa de apoio à vítima imigrante e de minorias étnicas. E esta é de facto uma questão central porque as questões culturais afectam tudo, não é? Desde a forma como as vítimas, por exemplo, dão significado à violência - imaginemos uma mulher imigrante, dependente economicamente do marido e que sofreu experiências por exemplo de perseguição política (vamos imaginar), no país de origem com esse marido ou que passou com ele experiências de discriminação e racismo. Mesmo que seja batida por ele, provavelmente sente muito mais afinidade com a experiência de vida dele do que com a de uma mulher branca que não tenha este tipo de vivências. Portanto, a própria valoração que se faz da violência é diferente. Depois, há uma série de estudos que mostram que, de facto, há crenças culturais específicas que de alguma forma legitimam a violência em certas culturas - por exemplo, a ideia de que a mulher que assume um papel sacrificial dentro da família, de alguma forma é valorizada por isso ou se torna melhor mulher por isso. As questões da privacidade, por exemplo, nas comunidades asiáticas, têm sido muito faladas, e da valorização do núcleo colectivo em detrimento da identidade e da felicidade individual. E, portanto, estes estudos mostram que, no fundo, as mulheres de minorias, por um lado, tendem a ter laços de dependência maior em relação aos parceiros – por questões às vezes até económicas, mas também por questões de experiência de vida e do que sofreram em conjunto.
A.H.: Pois…
C.M.: Por outro lado, tendem a ter uma grande desconfiança face aos técnicos e face às instituições, não é? (isso falando, por exemplo, de vítimas em condição ilegal é óbvio).
A.H.: São ameaças, não é?
C.M.: … Claro, ameaças por vezes muito concretas, de deportação, de terem que voltar para condições ainda mais adversas do que as que suportam agora. E, depois, muitas vezes também há modos de coping com a violência que são específicos das diferentes culturas. Por exemplo, há estudos interessantes que mostram que a religião, em determinados grupos culturais, é uma forma muito importante destas mulheres lidarem e irem suportando a violência. E é uma forma que nós, como técnicos formados numa lógica mais racionalista, tendemos de alguma forma a desvalorizar ou a não estar muito atentos a ela. E portanto, começa a haver alguma preocupação, de facto, com a ideia que nos temos que formar como técnicos também no plano cultural. Por um lado, dotar os técnicos de mais competências culturais, pela capacidade de entender melhor estas culturas diferentes; por outro adaptar o funcionamento, também, das instituições. Passa por coisas, desde ter técnicos que falem a língua dos clientes (que é básico!) até ter, por exemplo (há vários autores que falam nisto!) settings que não tenham uma decoração estritamente ocidental, com as quais as clientes se possam, de alguma maneira, identificar.
A.H.: Sentirem-se confortáveis, hum hum.
C.M.: Também a ideia de que, por exemplo, é importante quando trabalhamos estratégias de coping com estas vítimas olhar para as estratégias de coping que são importantes na cultura delas e, que muitas vezes são, de facto, muito distintas das nossas. Olhar também, por exemplo, para as questões do suporte social destas mulheres porque muitas vezes a prática de pedir ajuda ou de denunciar vai deixá-las numa situação de total isolamento dentro das comunidades. Há vários autores que falam ainda, por exemplo, na relevância de tentar agir junto dos líderes destas comunidades, nomeadamente os líderes religiosos – também é uma questão importante.
A.H.: Sim… hum hum…
C.M.: Depois, por exemplo, em comunidades com as quais nós ainda trabalhamos pouco, como por exemplo as comunidades muçulmanas, por vezes a denúncia da violência – o reconhecimento da violência – pode afectar mesmo a própria negociação da identidade religiosa da mulher. Portanto, há aqui de facto um universo no qual nós estamos apenas a começar e ao qual julgo que é importante estarmos atentos.
A.H.: … Caminhar. Hum, hum. Estamos a dizer que nós, profissionais que trabalhamos especialmente nesta área, temos muito caminho a fazer para nos prepararmos e também temos muito mais risco de exaustão e de…
C.M.: …muito mais…
A.H.: … não é?
C.M.: É. Há vários estudos que mostram que os profissionais que trabalham com vítimas (especialmente vítimas crianças) – há uma série de estudos, por exemplo na área do Abuso Sexual – que mostram que o risco de burnout nos técnicos que trabalham com esta população é de facto muito, muito elevado. Há muitos técnicos com sintomas de traumatização secundária, portanto, com sintomas análogos aos dos clientes. Muitos técnicos, sobretudo quando trabalham mais sozinhos ou quando trabalham com maior volume de casos, que começam a experienciar, por exemplo, imagens intrusivas construídas a partir das vivências das vítimas. Eu lembro-me por exemplo, de uma vez trabalhar no contexto de supervisão com uma colega que estava perturbadíssima porque começava a ter imagens intrusivas de abuso sexual. Trabalhava com uma clientela de miúdos abusados com experiências horrorosas. Nesse momento, aliás, estava particularmente envolvida com um caso que tinha uma história daquelas de livro, de abuso, muito violenta…
A.H.: Sistemático…
C.M.: E era um caso com o qual ela tinha, de facto, um grau de empatia muito grande. E portanto, esta técnica, por exemplo, estava perturbadíssima porque começava a ter imagens intrusivas de abuso, olhava para uma qualquer criança e ocorriam-lhe imagens de agressão e de violência, e acho que ela… tinha um pouco esta fantasia de “eu estou a começar a ficar psicologicamente perturbada! Não sei se estou a transformar-me numa abusadora!”… E isto tem que ser clarificado e reenquadrado… depois quando nós, ao conversar sobre isto, reenquadramos isto como uma reexperienciação, uma imagem intrusiva – um exemplo de traumatização secundária potenciada pela empatia que ela tinha com o caso – de facto, isto mudou o enquadramento, não é? E libertou-a um pouco desta ameaça. Por este tipo de situações, há vários estudos que sugerem que é importante, para quem trabalha com esta população, ter um volume de casos razoável, que não seja excessivo, e diversificar o tipo de casos – eu acho que isto é importante.
A.H.: Ter um cuidado com a gestão dos casos.
C.M.: Ter o cuidado de não, por exemplo, trabalhar só com violações, só com abusos. Desejavelmente, não trabalhar só com vitimação. Ter – o que nem sempre é possível para quem trabalha em instituições específicas (para quem trabalha na prática privada é mais fácil) – ter um volume de casos que não seja excessivo. E depois ter uma supervisão que não seja meramente técnica. Eu acho que é importante aqui haver supervisão, enfim… pode não ser com um supervisor individual, pode ser um aconselhamento de pares, em grupo. Enfim, pode haver aqui várias modalidades, mas eu acho que é importante, para quem trabalha nestes casos, que a supervisão não se resuma à questão técnica – da técnica específica (o que é que se vai fazer, de qual vai ser o processo terapêutico) – que seja muito a discussão, também, destas vivências emocionais, do impacto…
A.H.: … do impacto no técnico terapeuta.
C.M.: … no técnico, porque aparece sempre! E aparece muitas vezes associado a sentimentos de incompetência ou até de vergonha, e acho que é muito importante desconstruirmos esta imagem.
A.H.: Sim. Sem dúvida. Podemos caminhar para as perguntas finais, se calhar mais difíceis. Trabalhar nesta área, não é? Estudar e investigar nesta área da violência doméstica e do abuso sexual, o que é que tu recolhes mais como sabedoria e ensinamento útil para ti na vida? E depois, uma segunda questão, que é: que sugestões, resultantes dessa experiência e sabedoria, acharias úteis para psicoterapeutas que estão agora a iniciar actividade nesta área?
C.M.: Eu acho que uma das grandes aprendizagens que eu de facto fiz é da imensa capacidade de transcendência destas pessoas. Ou seja, da capacidade que de facto é fantástica de, no meio de experiências de sofrimento incríveis, haver em muitos destes casos, zonas de funcionalidade e competências e recursos e eu acho que isso, de facto, é enfim… é uma lição de esperança!
A.H.: De resiliência e de força.
C.M.: … de resiliência e de força. Eu acho que de facto, esta ideia de que é possível, no meio da adversidade e de histórias (às vezes quase inimagináveis) haver aqui portas (às vezes são pequeninas mas…) de abertura para uma vivência diferente… eu acho que de facto, é uma experiência fantástica. E, de facto, a grande capacidade de resiliência que, por exemplo, nos miúdos abusados aparece… é de facto incrível! E a forma como muitos deles conseguem construir uma leitura que – não desvalorizando os aspectos traumáticos da experiência – não os invalida como pessoas. Portanto, esta ideia de que é possível a pessoa ser vítima e sobreviver à experiência, mas não sobreviver apenas… na mera sobrevivência! Viver! Para além da experiência!
A.H.: … de uma forma afirmativa…
C.M.: … transcender-se de uma forma afirmativa. Ou seja, não se deixar reduzir àquela experiência violenta – eu acho que de facto como pessoa, como ser humano é uma…
A.H.: É uma grande lição, não é?
C.M.: … é uma lição de vida que me acompanha. Outra aprendizagem importante para mim, acho que é a imprevisibilidade destes percursos…
A.H.: … tão diferentes, não é?
C.M.: … e a ideia de que nem sempre… os livros dizem que o grau de violência sofrida, a frequência, a severidade, etc., condicionam o impacto (e eu acho que é verdade), mas há aqui uma margem para a imprevisibilidade que de facto é muito grande. E de facto, algumas das histórias mais curiosas, mais resilientes, mais exemplares, com as quais eu tive o privilégio de trabalhar, foram de pessoas com experiências de vida absolutamente… que nós diríamos esmagadoras! Às quais diríamos que ninguém sobreviveria. E portanto, a grande capacidade que, de facto, algumas pessoas têm para pegar naquilo que lhes aconteceu e encontrar saídas, não é? Portanto, esta ideia de que nós devemos manter aqui alguma margem, para nos deixarmos surpreender com os clientes, eu acho que é uma coisa engraçada, também, não é?
A.H.: Sem dúvida, sem dúvida.
C.M.: Porque, às vezes a história que nos entra pela porta é de tal maneira terrível que nós temos tendência a dizer “Pronto. Isto, esta está arrumada…”
A.H.: Resistência à criatividade e diversidade, não é?
C.M.: É. Exactamente. Portanto, eu acho que é uma ideia importante, que eu fui aprendendo - a ideia de que de facto o futuro é imprevisível.
A.H.: … e é preciso ter isso em conta…
C.M.: … e é preciso ter isso em conta, de facto. Outras vezes temos pessoas, de facto, que, pelo contrário, têm histórias que nos parecem relativamente banais e com as quais não conseguimos de facto… as quais não conseguimos ajudar, que não conseguimos que construam esta diferença. Portanto, a questão da imprevisibilidade dos percursos, também acho que é uma aprendizagem que, pessoalmente, é importante.
A.H.: Já estão aqui sugestões para os nossos colegas!
C.M.: – Eu acho que são! São sugestões, num certo sentido. Por outro lado, eu acho que de facto uma coisa importante também é nós não construirmos – eu insisto muito nisto, sou um bocado chata com isto, - não construirmos um estereótipo do que é a vítima, nem do que ela deve ser. A vítima não tem que ser boazinha, não tem que ser simpática… enfim, não tem que ser melhor do que ninguém para ser vítima, não é?
A.G.: E escutarmos o seu sofrimento, seja qual seja a imagem…
C.M.: E escutarmos o seu sofrimento, claro. Seja qual for. Faça ou não faça sentido para nós. E tentarmos de facto, construir uma ponte humana com a experiência daquela pessoa!
A.H.: Muito bem. Queres acrescentar alguma coisa?
C.M.: Não, acho que não…
A.H.: Muito obrigado, foi fantástico! Está dito. Fantástico! Vamos jantar?